PGR vai investigar teste clandestino com droga defendida por Bolsonaro como cura para Covid19 que pode ter causado a morte de 200 cobaias humanas no Amazonas

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) pediu à Procuradoria-Geral da República que investigue as circunstâncias em que ocorreram 200 mortes registradas num estudo conduzido com a proxalutamida no Amazonas, no início deste ano. O remédio, um bloqueador hormonal ainda usado em caráter experimental em todo o mundo, tem sido defendido por Jair Bolsonaro…

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) pediu à Procuradoria-Geral da República que investigue as circunstâncias em que ocorreram 200 mortes registradas num estudo conduzido com a proxalutamida no Amazonas, no início deste ano. O remédio, um bloqueador hormonal ainda usado em caráter experimental em todo o mundo, tem sido defendido por Jair Bolsonaro como a nova aposta de cura para a Covid-19.

Segundo O Globo, o parecer foi submetido ao plenário da Conep e aprovado por unanimidade. Na denúncia apresentada à PGR no último dia 3, dois dias depois de ser referendada pelos quadros da comissão, o órgão responsável por fiscalizar a pesquisa científica no Brasil apontou uma série de irregularidades no ensaio clínico realizado em diversas cidades amazonenses sob a liderança do endocrinologista Flávio Cadegiani. O ensaio autrorizado pelo governo federal foi levado ao Amazonas sem autorização da Conep, e as mortes nã foram reportadas no prazo regimental de 24 horas.

A proxalutamida ganhou notoriedade nacional depois de uma transmissão na internet realizada em 11 de março pelo grupo responsável pelo estudo da droga, que anunciou uma redução de 92% no número de mortes de pacientes graves da Covid-19. A partir daí, o remédio passou a ser citado com frequência pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu filho, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

O resultado, porém, despertou suspeitas entre infectologistas e outros pesquisadores e na própria comissão de ética. Se as informações estivessem corretas, havia o risco de os organizadores terem deixado uma quantia expressiva de voluntários que tomaram placebo morrerem desnecessariamente ao longo do trabalho. A menos que os dados estivessem errados ou imprecisos. Nesse caso, estariam caracterizadas falhas graves e possíveis fraudes. Ainda assim, os resultados nunca foram devidamente esclarecidos. A promessa revolucionária também não atraiu o interesse de publicações científicas mundiais.

A Conep passou a requisitar esclarecimentos aos pesquisadores sobre as mortes. No histórico apresentado à PGR, o coordenador da comissão, Jorge Venâncio, diz que inicialmente foram reportadas 170 mortes no ensaio clínico. Após uma emenda, esse número passou para 178 e, por fim, 200.

Além de não relatar as mortes à comissão, os pesquisadores também não detalharam as condições clínicas dos voluntários que faleceram. Por isso, na avaliação de Venâncio, não é possível “descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”.

Pelas regras do Conselho Nacional de Saúde (CNS), os pesquisadores tinham que ter interrompido o estudo após o óbito de voluntários, para averiguar se era a proxalutamida que estava provocando as mortes – ou, ainda, se havia problemas na metodologia.

Isso porque, segundo os protocolos registrados na Conep, o ensaio era do tipo duplo-cego, quando cientistas e pacientes não sabem quem recebeu a droga e a substância placebo. Para o espanto da própria comissão, porém, os pesquisadores continuaram a recrutar e a conduzir o ensaio clínico como se estivesse tudo normal.

Mas há mais. Entre inconsistências e desrespeitos frontais a normas previstas em resoluções do CNS, a Conep concluiu que os responsáveis pela pesquisa desrespeitaram quase todo o protocolo aprovado em 27 de janeiro. Fala-se, ainda, em obstrução das apurações e riscos à segurança e aos direitos dos voluntários.

Em primeiro lugar, o estudo nem sequer poderia ter sido realizado no estado do Amazonas. Ao registrá-lo na Conep, em 10 de janeiro, o médico Cadegiani informou que a proxalutamida seria usada em sua clínica de endocrinologia em Brasília. Mas começou a aplicá-la por conta própria no Amazonas ainda em fevereiro, e só depois pediu para estender a pesquisa a Manaus, Parintins, Itacoatiara, Coari, Manacaparu, Maués e Manicoré.

A Conep não autorizou a mudança, mas àquela altura isso já não fazia diferença, porque o remédio já havia sido aplicado nos pacientes de Covid de todos esses lugares.

Além disso, o grupo, liderado por Cadegiani e patrocinado pela rede de hospitais privada Samel, não respeitou o número de voluntários previsto no desenho original do estudo. Enquanto a comissão deu parecer favorável a um ensaio com 288 pacientes, o endocrinologista apresentou no fim de abril – três meses depois – uma emenda ampliando o número de voluntários para 588. E, ao final, entregou um parecer com resultados de 645 pessoas, com as atas de apenas três dos nove centros de referência do Amazonas para os quais havia pedido autorização.

Analisando essas atas, Venâncio concluiu que as equipes das pesquisas não receberam treinamento adequado para aplicar a proxalutamida nos doentes de Covid-19. Outro problema descrito na denúncia à PGR é que o perfil dos voluntários mortos era totalmente incompatível com o perfil clínico de pacientes registrado na Conep.

Ao submeter o ensaio à comissão, Cadegiani afirmou que a proxalutamida seria administrada em pacientes leves e moderados, mas os resultados mostravam que os óbitos foram atribuídos a insuficiência renal ou hepática, características de pacientes muito graves, que não eram o objeto do ensaio.

“Ainda que tenha tentado, o pesquisador não esclareceu a inconsistência notada entre o perfil clínico dos participantes da pesquisa e a elevada taxa de mortalidade no grupo controle”, escreveu Venâncio.

Por fim, a comissão identificou ainda problemas sérios na formação do comitê independente, exigência da própria Conep para a realização de ensaios clínicos. A função desse comitê é supervisionar as condições éticas e de segurança na pesquisa e, se for o caso, determinar a interrupção dos trabalhos – como aconteceu algumas vezes no desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19.

No caso da proxalutamida, porém, havia um “patente e inequívoco conflito de interesses” na composição do comitê. Os pareceres submetidos à Conep são assinados por Maja Kovacevic, pesquisadora clínica da própria Applied Biology – empregadora de Cadegiani, patrocinadora do estudo e parceira da desenvolvedora da proxalutamida, a chinesa Kintor Pharmaceuticals.

Nos documentos, Kovacevic não sinalizou qualquer preocupação com o elevado número de óbitos, não destacou a ocorrência expressiva de mortes por falhas hepáticas e nefrológicas e, principalmente, não determinou a quebra do sigilo dos dados dos pacientes para verificar em que grupo as mortes estavam acontecendo.

Essa é a lacuna que mais preocupa a comissão. Na denúncia ao Ministério Público, a Conep ressaltou o fato de que, mesmo tendo estendido os prazos várias vezes, os pesquisadores não forneceram muitos dos documentos requisitados, o que poderia configurar obstrução das investigações.

Além dos dados sobre os voluntários mortos, também não foram entregues à comissão os termos de consentimento assinados pelos pacientes.

Os documentos enviados à PGR serão remetidos ao Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) e ao MPF do Rio Grande do Sul. Além do estudo irregular no Amazonas, o mesmo grupo realizou um ensaio clandestino com a droga num hospital militar de Porto Alegre.

No último contato feito pela reportagem, o MPF-AM informou que ainda avança nas diligências, sem detalhar. O caso de uma idosa que faleceu após ter o quadro agravado enquanto recebia a proxalutamida. A família da vítima relata que os médicos se recusaram a transferir a idosa para um hospital de referência, o que só ocorreu quando seu estado já era irreversível.

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