A contemporânea promiscuidade partidária

Por Hudson Carvalho* Há dias, a Alemanha realizou eleições para escolher o sucessor da extraordinária e inoxidável Angela Merkel – solitária estadista ainda nas lides -, que se retira do proscênio, por conta própria, após 16 anos à frente do governo germânico. O Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda, derrotou a coalizão da União Democrata Cristã…

Por Hudson Carvalho*

Há dias, a Alemanha realizou eleições para escolher o sucessor da extraordinária e inoxidável Angela Merkel – solitária estadista ainda nas lides -, que se retira do proscênio, por conta própria, após 16 anos à frente do governo germânico. O Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda, derrotou a coalizão da União Democrata Cristã (CDU) de Merkel com a União Social-Cristã (CSU), de centro-direita, por estreita margem (25,7% a 24,1%) e se credenciou para estruturar a nova gerência. Agora, o morubixaba do SPD, Olaf Scholz, esforça-se para formar um alicerce político que lhe permita administrar a vigorosa democracia parlamentarista alemã, tentando seduzir a terceira força, Os Verdes, de centro-esquerda, e o Partido Democrático Liberal (FDP), de centro-direita. Esse mix ideológico de governança nem é tão extravagante diante do que acontece no universo partidário internacional. O próprio derradeiro governo Merkel conta com a excêntrica sustentação do seu antagônico histórico – o SPD. Merkel é a chanceler – maior cargo na hierarquia governamental alemã – e Scholz ocupa a vice-chancelaria. Desde 1949, SPD e CDU revezam-se na preferência dos alemães. Unir SPD e CDU – o que Merkel logrou – é como juntar Democratas e Republicanos em uma mesma intendência nos EUA.

A promiscuidade partidária faz-se característica do século XXI; já anotaram vários estudiosos. Em 2019, na monarquia parlamentarista da Espanha, o Podemos, de esquerda, topou compor o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda. Apesar da familiaridade ideológica, o Podemos desabrochou no âmbito das esquerdas, justamente, para se diferenciar dos vícios do PSOE, como aconteceu, no Brasil, com o PSOL em relação ao PT. Há 39 anos, o PSOE e o Partido Popular (PP), de centro-direita, alternam-se no controle das maçanetas do Palácio da Moncloa. Em meados de 2021, no modelo parlamentar de Israel, oito agremiações de diversas gradações ideológicos juntaram-se para destronar o direitista Benjamin Netanyahu e dividir 25 ministérios. Bibi ocupava o cargo de premiê há 12 anos. O ungido Naftali Bennet fora ministro da Defesa e de Assuntos da Diáspora de Netanyahu, e o seu partido Yamina posta-se na extrema-direita. Ademais, o Yamina só elegeu sete dos 120 representantes do Knesset, o parlamento unicameral israelense. A engenharia que amontoou 60 deputados e alçou Bennet prevê ainda a passagem do bastão, na metade do mandato, para Yair Lapid, chefe do partido centrista Yesh Atio. O Partido Trabalhista, de centro-esquerda, o Meretz, de esquerda, e até a Lista Árabe Unida conveniam-se no governo liderado por um extremista de direita, que, provavelmente, ameaçou permanecer fiel a Bibi, caso não lhe entregassem a súpera prenda. Na Hungria, seis partidos de tonalidades ideológicas múltiplas realizaram prévias recentemente, unificando candidatura para enfrentar o despótico e ultranacionalista Viktor Orbán nas eleições de abril de 2022. Venceu o conservador Peter Marki-Zay, que recebeu a solidariedade de contingentes esquerdistas.

Os episódios de Israel e, sobretudo, da Hungria talvez se expliquem pela crescente repulsa de parte substantiva das respectivas comunidades a Netanyahu e a Orbán. Com a milagrosa exceção dos Estados Unidos, as surubas partidárias tornaram-se norma na prática política; não unicamente no Brasil. Os ambientes parlamentaristas já são propícios aos contubérnios, porém antes exibiam certo decoro e coerência política. Agora, é um vale tudo. O fim da era comunista contribuiu para o surgimento de grêmios anêmicos ideologicamente. E a crescente tecnologização dos setores produtivos modificou o mercado de trabalho e debilitou os movimentos sindicais, muitos deles esteios de siglas esquerdistas. As redes sociais, com a sua natureza multidirecional, horizontal e descentralizante, ao fragilizar o predomínio das elites sobre os meios de comunicação, ampliaram as possibilidades de representação e foram a pá de cal na concepção dos partidos tal qual a conhecíamos. Bem ou mal, a mídia institucional isolava as ideias extremistas e a aristocracia partidária confinava os outsiders, que não dispunham de mecanismos propagandísticos para se impor. Até o milênio passado, os partidos organizavam-se em torno de causas nítidas e se faziam voz de parcelas da população. Hoje, no geral, eles não encarnam patavina nem representam ninguém. Cada vez mais, surgem partidos de ocasião, meramente cartoriais, paridos somente para participar dos torneios eleitorais, como o “Em Marcha!” do presidente francês Emmanuel Macron.

Os puristas e os esquecidiços podem estranhar e se estomagar com o atual ectoplasma dos partidos contemporâneos, todavia eles sempre foram mutantes e simbióticos ao contexto imperante, desde criados na Inglaterra no século XVII – Whig e Tory. O filósofo francês Bernard Manin enfatizava a sina metamórfica dos partidos políticos na metade dos anos 90. À época, ao mirar na emergente “sociedade de espetáculos” chancelada pelos meios de comunicação, ele lavrou a metáfora da “democracia de público (ou plateia)” em oposição à “democracia de partido”. Na “democracia de público”, as lideranças consolidam-se pela capacidade de se comunicar com a opinião pública, independente de vivência no seio partidário. Revendo as suas teorias duas décadas depois à luz de frescas evidências, Manin as reafirmou, acrescentando a percepção de profunda erosão da fidelidade partidária. Hoje, mundialmente, os partidos reúnem menos militantes do que em quadras passadas e ostentam índices módicos de confiabilidade.

De acordo com diversos especialistas, o declínio representativo dos partidos deriva-se das agruras e limitações da democracia liberal, espelhando uma subjetiva crise da modernidade. A democracia não é panaceia para todos os males – nada é -, contudo ela se reveste de imaginário de promessas, socialmente, inatingíveis a muitos. Conforme o politólogo Yascha Mounk, a desesperança econômica reflete no sistema político e se afigura em uma das razões da crise da democracia liberal, que, quando debilitada, se suscetibiliza a experiências autoritárias. Para o acadêmico inglês David Runciman, autor do livro “Como a democracia chega ao fim”, a eleição de Donald Trump exprimiu o “mal-estar democrático”, que inspirou inúmeros tratados alarmando sobre a morte do democratismo. Alguns são os elementos constitutivos de uma democracia. O plácito de fartura econômica e social configura-se apenas um deles. Superiores são as facetas de liberdade plena, em todos os sentidos, e de crivos eleitorais constantes, que permitem a rotatividade no poder. A respeito do último ponto, Margareth Tatcher assinalou: “A democracia não é um sistema feito para garantir que os melhores sejam eleitos, mas para impedir que os ruins fiquem para sempre”.

Há mais de uma década, o falecido cientista político irlandês Peter Mair já preconizava que, com as sociedades cada vez mais individualizadas, não haveria porvir para os partidos de massa nem regeneração da função de agentes de representação. Ao se divorciarem da sociedade, os partidos aproximaram-se mais das esferas governamental e estatal. Um dos motivos foi o pragmatismo econômico. “Na maioria dos países e em quase todas as democracias recém-estabelecidas a fonte de financiamento preferida passou a ser o tesouro público, de tal modo que o sustento da vida organizacional de muitos partidos é bastante dependente das subvenções estatais”, registrou Mair. Sob essa lógica, a obtenção de cargos e de espaços nos governos passou a ser um objetivo em si. Os partidos deixaram de ser apêndices da sociedade para se metamorfosearem em parte do Estado. Inverteu-se a clássica equação: os partidos não representam mais a sociedade junto ao Estado, e sim o Estado perante a sociedade. No Brasil, a situação é exatamente essa, notadamente a partir do término do financiamento privado das campanhas eleitorais; a quase totalidade dos nossos partidos transformou-se em parasita governamental.

Peter Mair, entretanto, delineou duas perspectivas para os combalidos partidos políticos. Uma de ênfase na ação governativa na busca de aceitabilidade. Através de boas administrações, os partidos poderiam assegurar propriedades compensatórias à perda da atribuição representativa. E outra de reafirmação da importância e da necessidade da democracia. “Um dos modos pelos quais os partidos poderão garantir o seu futuro será enfrentando e aceitando as suas novas circunstâncias e procurando enfatizar a sua legitimidade como garantia de uma forma de democracia abrangente, transparente e responsável”, afirmou ele. O resumo é simples: se existe forte questionamento quanto ao papel representativo dos partidos, o mesmo não acorre em se tratando de sua relevância para a democracia. Por isso, para os partidos, realçar a sua fisionomia democrática reforça a possibilidade de acolhimento pela maioria da coletividade, principalmente nas estações de propósitos totalitários.

Gostemos ou não, solidifica-se um processo em curso de transmutação radical das faculdades dos partidos políticos. Se é assim, podemos dizer que, sob certos aspectos, estamos na vanguarda desse movimento no Brasil. Não é de hoje que os nossos partidos assumiram, descaradamente, as suas “vocações” governamentais. Urge mantê-los na órbita democrática. Temos um presidente da República sem a menor inclinação democrática e com fantasias ditatoriais. Sem partido no momento, ele busca um para concorrer à reeleição. Alguns já se ofereceram como cavalo. Para os milhões de opositores e críticos de Bolsonaro, pela ameaça que ele significa para a democracia brasileira, na próxima jornada eleitoral, tão primordial quanto se livrar dele é varrer tudo e a todos que o sustentam politicamente. A esta altura, o partido ou a aliança que dê guarida a Bolsonaro e a seus projetos absolutistas não poderá alegar não saber o que está fazendo. Não basta votar contra Bolsonaro; há de se expressar também um clamoroso repúdio aos que estendem tapete vermelho para intuitos ditatoriais.

Pelo que eles aprontam, é fácil desgostar e infamar os partidos políticos. Por enquanto, eles continuam imprescindíveis aos regimes democráticos. Quase duzentos anos transcorridos, permanecem atuais os dizeres do historiador e pensador político francês Alexis de Tocqueville: “Os partidos são um mal necessário nos países livres”. Resta-nos o consolo da milenar e histórica alocução do notável romano Cícero: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra”. 

*Hudson Carvalho é jornalista e consultor político  

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