A República dos Deputados Federais

HUDSON CARVALHO Em 2017, no rescaldo do “Mensalão”, do “Petrolão” e de sortidas indecorosidades pluripartidárias, que evidenciaram o contumaz conluio impudico de agentes públicos e privados, o espaçoso Supremo Tribunal Federal extinguiu o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, contudo manteve a doação contingenciada de pessoas físicas – esmola insuficiente para bancar o clímax democrático. Instituiu-se,…

HUDSON CARVALHO

Em 2017, no rescaldo do “Mensalão”, do “Petrolão” e de sortidas indecorosidades pluripartidárias, que evidenciaram o contumaz conluio impudico de agentes públicos e privados, o espaçoso Supremo Tribunal Federal extinguiu o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, contudo manteve a doação contingenciada de pessoas físicas – esmola insuficiente para bancar o clímax democrático. Instituiu-se, então, a subvenção pública para as contendas eleitorais. Na ocasião, devido à pororoca de escândalos, a medida do STF revestia-se de aparente razoabilidade saneadora, mascarando os seus eventuais e ainda imprevisíveis efeitos colaterais.

Algumas foram as consequências no panorama político. A mais vistosa revela-se na sobrevalorização dos representantes da Câmara dos Deputados, pois as verbas públicas são distribuídas pelo tamanho das bancadas, que já tinham peso na definição do tempo da propaganda eleitoral gratuita nas TVs e nas rádios. Cabe ainda a maior autoridade da Casa o particular capricho de estartar os processos de impedimento dos presidentes da República. Para os partidos, o relevante, hoje, é colecionar deputados federais. E as mancomunagens se dão, quase que, exclusivamente, em função das possibilidades de os políticos terem acesso ao fundo partidário. Geralmente, quando um político escolhe ou troca de partido, a razão é, basicamente, pecuniária. Por exemplo, por motivações intestinas, Geraldo Alkmin está deixando o PSDB para se candidatar ao governo paulista em 2022. Segundo o Datafolha, ele lidera o curso pré-eleitoral. PSD, DEM, PSL e outras siglas disputam o seu passe. Pelo parcial favoritismo, Alkmin cacifa-se para a escolha e pondera sobre que agremiação lhe oferecerá as condições mais privilegiadas – leia-se: grana para o custeio da peleja eleitoral. Não há ilegalidade nisso; apenas pragmatismo na veia, já que a maioria dos partidos não se difere aos olhos do eleitorado. Majoritariamente, os políticos movimentam-se focados nos haveres que vão dispor nas campanhas.

A especulada fusão do PSL com o DEM atende, prioritariamente, ao propósito de se estruturar uma super bancada na Câmara dos Deputados, para abocanhar grande naco da arca eleitoral, cerca de 320 milhões de reais.  Secundariamente, visa à formação de um encorpado partido de direita para ocupar o pós-Bolsonaro. A nova lógica criou situação atípica: as candidaturas majoritárias só interessam aos partidos se, realmente, competitivas, como é o caso de Alkmin. Sem a banca empresarial, eles evitam desperdiçar dinheiro com as pretensões inférteis. Na concomitância das eleições gerais (presidente, governadores, senadores e deputados), a ambição das legendas é irrigar as possibilidades de aumentar as suas bancadas federais. Reunir deputados significa incrementar o patrimônio legal e se fortalecer para a interlocução com o Executivo. Com isso, nos pleitos de presidente e de governadores, o número de postulantes tende a decrescer, pois os partidos não vão esbanjar recursos com aqueles desprovidos de chances efetivas. Não nos livraremos, entretanto, das siglas e dos personagens folclóricos, sem representação e patacas, que usam as jornadas eleitorais para darem ciência de suas sazonais e insignificantes existências, como o PSTU, o PCO e os eymaéis da vida. Em suma, o novo normal projeta pleitos majoritários com menos pretendentes, pois os partidos vão priorizar reeleger os seus deputados federais e financiar outros com potenciais para o mesmo cargo. A futura eleição presidencial deverá se balizar por esse contexto. E a momentânea polarização Bolsonaro e Lula reforça-o, desestimulando aventuras sem perspectivas de êxito e meramente onerosas aos cofres partidários.

Pelas peculiaridades expostas, os deputados federais assumiram protagonismo inimaginável há poucos anos. Comumente, em moeda corrente no cenário político, passaram a valer mais do que governadores e senadores. Que governador tem relevância hoje no jogo político brasileiro? João Doria? Flávio Dino? Após a redemocratização do país, eram os governadores que pontificavam, e o elenco contemplava políticos da dimensão de Antônio Carlos Magalhães, Leonel Brizola, Mario Covas, Miguel Arraes, Pedro Simon e Tancredo Neves. Agora, são os deputados federais que ditam os nortes da política em um ambiente medíocre de pigmeus públicos. Pragmáticos e gulosos, eles monopolizam a distribuição das divícias partidárias. Insaciáveis, reivindicavam um escandaloso fundo eleitoral de 5,7 bilhões de reais para as eleições de 2022; valor vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Nas eleições de 2018, foram gastos 1,7 bilhão de reais. Em 2020, despenderam-se 2 bilhões de reais de capital público. Para o próximo ano, o montante ainda não foi fixado, porém, no Projeto da Lei Orçamentária Anual, prevê-se fatura de 2,128 bilhões de reais. Em mais de uma centena de países, existem aportes públicos eleitorais, mas nenhum exibe a vergonhosa desproporcionalidade brasileira.

Com kafkianos 33 partidos legalizados e com o nosso inadministrável presidencialismo de coalizão, a elite política entendeu que, para desfrutar do poder, não precisa se esforçar na tentativa de eleger o principal mandatário da nação; basta apoiá-lo, no âmbito parlamentar, na hora certa. Se puder fazê-lo refém, melhor. Com o quadro partidário ultrafragmentado, ninguém se elegerá presidente com a governabilidade sustentada somente por sua base natural. No Brasil, a quase totalidade dos políticos vive sob os apanágios do poder e desconhece o que é espírito público. Também não sabe sobreviver na oposição. Aqui, ser político é ser governo, excetuando poucos.

Pesquisa fresquinha do Datafolha registra que apenas 13% da população consideram ótimo e bom o trabalho do Congresso; 44% avaliam-no como ruim e péssimo. Esses números fundamentam-se na percepção socializada de que os parlamentares cuidam, exclusivamente, de suas vantagens, lixando-se para o bem coletivo. Como se sabe, o Congresso – vetor crucial da democracia – tem duas instâncias legislativas: o Senado e a Câmara dos Deputados. O Senado não abriga anjos, todavia mostra-se mais “institucional”, sobretudo comparando-se à Câmara dos Deputados, onde assombra o imaginário de anões do orçamento, severinos, cunhas e liras.

Sem termos um regime parlamentarista, com o império do financiamento público, criamos, infelizmente, a República dos Deputados Federais e um sistema semipresidencialista nefasto. Pior; sem que o povo se dê conta disso.  

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